Uma tribo chamada Congresso

26/09/2012 22:30

Conta-se que, certa vez, um antropólogo foi pesquisar uma tribo primitiva com costumes antropofágicos. Assim, passou a observar de longe os hábitos daquela curiosa comunidade e, embora tenha tomado todas as precauções para não ser visto, o fato é que o estudioso foi capturado pelos canibais e levado para o líder da tribo, a quem caberia decidir sobre o que fazer com o intruso. O chefe da tribo canibal resolveu dar uma chance àquela iguaria capturada, pelo menos para que pudesse escolher a sua forma de morrer. Então, propôs ao antropólogo que dissesse algo que, se fosse verdade, ele morreria a flechada, e se fosse mentira, ele morreria queimado.

Resultado: o antropólogo falou algo tão inteligente que o chefe da tribo ficou sem saber se iria matá-lo a flechada ou se iria jogá-lo na fogueira. Terminou libertando o cativo.

O que teria dito o antropólogo?

Bem, como diria o poeta, deixemos a profundidade de lado e passemos a analisar um enigma bastante brasileiro, criado pela esfinge da nossa Constituição Federal (CF). E aqui eu começo com a pergunta: os parlamentares que estão sendo julgados no STF, se forem definitivamente condenados, poderão ser presos?

O artigo 53, § 2.º, da constituição brasileira dispõe sobre a impossibilidade de prisão dos deputados e senadores, nos seguintes termos: “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”.

Já o artigo 55 traz a regra constitucional da perda do mandato, sendo interessante que você, leitor, tenha em mãos a Constituição, ou a acesse pelo link www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm, para que eu não precise transcrever aqui todo o dispositivo.

Todos a postos, com a Constituição? Então, vamos lá.

Veja que o art. 55, no inciso VI, diz que perderá o mandato o deputado ou senador “que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”. Correto?

Mais adiante, no § 2.º, diz ainda o seguinte: “Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”.

Esse parágrafo segundo tem o efeito prático de condicionar a perda do mandato do parlamentar, que sofreu condenação criminal, a uma decisão da respectiva casa do Congresso Nacional, ou seja, se for um deputado, decisão da Câmara; e se for um senador, decisão do Senado.

Se você está achando complicado, ainda não viu nada. Veja só: o exercício de um mandato político está obviamente condicionado ao gozo dos direitos políticos, os quais podem ser suspensos, segundo o artigo 15 da Constituição. Confira aí.

E mais: o inciso III deste artigo 15 aponta como uma das hipóteses de suspensão dos direitos políticos exatamente a “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”. Quer dizer, se alguém (não apenas deputado ou senador) for condenado criminalmente por decisão judicial que não caiba mais recurso, este alguém tem seus direitos políticos suspensos, enquanto estiver cumprindo a pena. Assim, não pode votar nem ser votado, não pode exercer cargos públicos nem participar de concursos, por exemplo.

Daí, você já consegue entender o porquê da discussão sobre o voto dos presos. É que existem basicamente dois tipos de prisão: aquela que é o resultado da aplicação da pena, definida pela sentença penal condenatória “transitada em julgado” (leia-se, que não cabe mais recurso), também chamada prisão pena; e aquela decidida como medida cautelar ou prisão provisória. Neste último caso, embora a pessoa esteja presa, ela ainda não foi condenada (por sentença penal condenatória transitada em julgado), conservando-se não só a sua presunção de inocência, como os seus direitos políticos, dentre eles, o de votar.

Você já deve ter percebido que, com relação aos deputados e senadores, estamos diante de dois institutos: a prisão e a perda do mandato, não é verdade?

Pois bem. Ambos os institutos estão aqui vinculados a uma mesma raiz, que é a condenação criminal. Se, por ser condenado criminalmente, a pessoa tem seus direitos políticos suspensos (art. 15, III), por consequência, deve-se concluir que, em se tratando de parlamentar, este deverá perder o mandato. Por outro lado, pelo art. 53, § 2.º, o parlamentar não pode ser preso, mas parece que apenas cautelarmente, ou seja, não estaria sujeito à prisão provisória. Sim, porque se ele for condenado criminalmente (agora, acompanhe o efeito dominó), seus direitos políticos estão suspensos, logo perde o mandato, e logo poderia ser preso, agora na condição de prisão pena, resultado de uma sentença penal.

Parece óbvio, mas não é. Como se sabe, o direito é um fenômeno que exige interpretação e, às vezes, as normas surgem não só confusas como contraditórias. É o que nós chamamos de antinomia, ou seja, quando duas normas preveem soluções distintas para o mesmo fato.

Veja a situação concreta que estamos discutindo. Se os deputados forem condenados criminalmente pelo STF, aplica-se o art. 15, III, ou o art. 55, VI, § 2.º da CF? Pelo primeiro dispositivo, eles teriam os direitos políticos suspensos e perderiam de imediato o mandato, podendo, desde já, ser presos. Pelo segundo dispositivo, eles só perderiam o mandato por decisão da Câmara dos Deputados, por voto secreto e maioria absoluta, e ainda com direito à ampla defesa. Neste último caso, se a Câmara decidir pela manutenção do mandato, restará inviabilizada a prisão, mesmo como pena. Ora, se a manutenção do mandato só tem sentido com o seu efetivo exercício, então, como se compatibilizaria o exercício do mandato com a prisão do parlamentar? Assumiria o suplente, enquanto o titular estivesse preso? Absurdo!

Eu fico imaginando qual seria a “ampla defesa” do deputado perante a Câmara dos Deputados quando da decisão sobre a perda do mandato, conforme o § 2º do art. 55. Este é um dispositivo completamente esdrúxulo, que põe em xeque a autoridade da decisão soberana do Supremo Tribunal Federal. É o mesmo que dizer: todo o devido processo legal exercido no STF foi inútil. Todo o sofrimento do ministro Joaquim Barbosa com sua coluna foi em vão...

Entretanto, como se sabe, o critério que deve resolver a antinomia acima mencionada é o da especialidade: a norma específica prevalece sobre a geral. Nesse caso, a norma constitucional que exige a decisão da Câmara dos Deputados para a perda do mandato, sendo específica, prevalece sobre a norma geral, também constitucional, que dispõe sobre a suspensão dos direitos políticos, quando da condenação criminal transitada em julgado.

Embora essa solução não defina a questão da prisão, daí o enigma da Constituição, o que se percebe é que, como acima suscitado, a medida privativa de liberdade, seja na forma cautelar ou definitiva, é incompatível com o exercício do mandato. É dizer, se este for mantido pela Câmara dos Deputados, a prisão torna-se inviável.

Eis uma polêmica que só agora estamos tendo oportunidade de discutir. É que a Constituição de 1988 foi elaborada por uma constituinte congressual, o que oportunizou aos então constituintes uma atividade de legislação em causa própria. Se concluído o texto constitucional, os constituintes continuariam como deputados federais e senadores, nada mais óbvio do que enxertar a constituição de brechas ou de atecnias.

Assim como o nosso personagem do início desse texto, é preciso dar uma resposta mais que inteligente para nos mantermos vivos perante essa tribo canibal que é o Congresso Nacional. Do contrário, seremos todos devorados.

Por falar nisso, o que o antropólogo disse foi: “Eu vou morrer queimado”.