O Último Argumento

22/12/2013 01:34

 

Imagine um Estado sem política pública efetiva de educação, de saúde, de segurança pública, de saneamento básico, de emprego, de habitação etc. Um Estado cujas autoridades são tão cínicas a ponto de gastar uma fortuna (nosso dinheiro) com publicidade para mentir descaradamente, anunciando supostas atividades do poder público naquelas áreas sociais. Agora, imagine a sociedade nesse Estado?

Bem, de início, uma elite econômica que esbanja riqueza, com carros luxuosos e mansões exuberantes, combinada, paradoxalmente, com uma boa dose de mediocridade cultural, que é o sintoma principal da indiferença e do alheamento a tudo o que ocorre do lado de fora desses verdadeiros castelos medievais. Lógico, eles não dependem dos serviços públicos essenciais.

Observe uma festa nesses meios mais afortunados e o que se vê é muito jovem ababacado bebendo sob a vigilância distante e complacente de pais orgulhosos de seus meninos crescidos. Tudo isso ao som ensurdecedor de músicas eróticas monossilábicas ou com vogais de efeito, num ritmo que mais parece uma dança do acasalamento.

Logo abaixo, vem uma classe média espremida entre a violência cotidiana, resultado da própria política repressiva, mais burra dos que seus defensores, e a necessidade de se estabelecer dignamente. É o colégio dos filhos e o material escolar, hospitais “privados” que mais parecem ambulatórios de guerra, prestações da casa própria, do financiamento do carro, dentre outras carestias nossas de cada dia.

Num nível mais abaixo da pirâmide social, sem seguir um rigor sociológico que possa apontar outros níveis, vegeta uma camada de seres humanos entregues à própria sorte, fruto do que Jessé Souza chama de “A Construção Social da Subcidadania”, título de seu livro. Nesta zona do rebaixamento social, a série B é um buraco na terra, a “parte que lhe cabe nesse latifúndio”, na feliz expressão de João Cabral de Melo Neto:

Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.

É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.

Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

Não bastasse toda a miséria, o preconceito da sociedade e o descaso de um poder público cretino, a “subcidadania” é amedrontada por um vilão crudelíssimo: o crack.

É claro que a droga não está apenas aqui, pois ela vitimiza todas as classes sociais. A diferença está no tratamento. Na elite, o caminho que passa pelo álcool, que, além de lícito, é visto como afirmação da personalidade, até o pó branco que polvilha a mente de muitos “filhinhos de papai”, a estrada vai dar num nosocômio desinfetado das bactérias e das mídias curiosas. Na classe média, talvez uma internação obrigatória, determinada por um juiz “consciente”, e um psicólogo que atenda gratuitamente (ou mais em conta) em alguma unidade acadêmica.

Mas na miséria, o bagulho desce rampa abaixo e cai na parte generosa do latifúndio mesmo. É que, para o pai de um maconheiro em potencial da Ponta Verde ou do Aldebaran, esses “drogados” da periferia são um perigo, e devem ser tratados com rigor. Esse raciocínio é o que legitima uma polícia local eficiente, formada, em grande parte, por um bando de fodidos e mal pagos, fazendo sua catarse no lombo de mulatos pobres e chapados. Algo como o “silêncio sorridente de São Paulo ante a chacina”, na música Haiti, de Caetano Veloso. Enquanto isso, aparece um f.d.p. que vai para a televisão, num horário gratuito, dizer que precisa do seu voto para poder acabar com a criminalidade por meio de leis mais duras.

Imagine um jovem de uma família pobre e miserável, sem perspectiva, sem educação, sem religião, sem moral, sem praticamente nada. Exemplo: recentemente, por meio de uma ação social promovida por uma de suas comissões, a OAB/AL levou um grupo de crianças de uma favela para ver, pela primeira vez, um cinema. Chegando lá, uma das crianças, de 7 anos, queria urinar. Ao ser levada ao banheiro, constatou-se que ela não só desconhecia o que era um cinema, pois começou a fazer suas necessidades no chão do banheiro. Um retardado social poderia se apressar a dizer: “Coisa de maloqueiro!”. Mas aquela criança teve que ser orientada para fazer xixi no vaso sanitário, peça de luxo que ela simplesmente nunca tinha visto na vida...

O que é preciso perceber é que numa (sobre)vida assim, a criança e o jovem são facilmente capturados pelas drogas. E isso implica crime organizado combinado com dependência química, uma fórmula cruel para controlar a vida de qualquer pessoa. Por um lado, para atender as injunções orgânicas, que clama despoticamente por mais drogas, e, por outro lado, para não ver concretizadas as ameaças dos traficantes, exigindo o pagamento pelo produto consumido, o viciado vai em busca de qualquer coisa com valor econômico, mínimo que seja, mas que possa ser vendido. Eis uma das faces da violência cotidiana a que estamos já morbidamente acostumados.

Isso justifica um assalto à mão armada? Não, claro que não.

Explica? Talvez.

Pelo menos para nos permitir compreender esse fenômeno social extremamente delicado, exigindo que a nossa indignação se dirija contra a injustiça de um sistema político formado por uma canalha de aproveitadores. É difícil aceitar, mas a arma na mão de um bandido pode ser o último recurso, o último argumento de uma voz abafada pela indiferença social e institucional. Esse é um argumento que fere nossos corpos e nossas almas, pois, lamentavelmente, pode custar a vida de entes queridos. Alguém que estava no lugar errado, na hora errada; que, por mero susto diante de um repentino “passe o celular!”, fez um movimento brusco e causou a reação fatal de um lunático desesperado com a arma em punho.

Mas, vou repetir a pergunta. Isso justifica a barbárie?

Será que ao menos explica argumentos sérios ou emotivos, pseudointelectuais ou pretensamente politizados, em defesa de uma reação mais violenta contra aqueles que chamamos de “vagabundos”, “bandidos”, “marginais”?

Na última sexta, morreu no Hospital Geral do Estado mais um jovem de 20 anos trucidado por uma histeria coletiva. Após uma tentativa de assalto frustrado, o “elemento” tentou fugir, mas foi arrancado de dentro de uma loja de conveniência e linchado por uma turba de dementes. Certo, os mortos poderiam ter sido a mulher e o filho que quase foram suas vítimas, mas o fato é muito mais grave para ser avaliado de forma maniqueísta, sob o enfoque de quem vai morrer: o bandido ou o mocinho?

Na semana, também houve uma vítima fatal de um assalto à mão armada. Alguém relativamente próximo de minha família. Um frio correu pela espinha, um misto de medo, impotência e pesar. Hoje estou muito triste. Triste pelo sogro de minha sobrinha, morto no assalto, triste pelo jovem linchado, triste por viver numa sociedade perdida e acuada, sem valores e sem alma, governada por um príncipe mal coroado. Estou triste, enfim, por reconhecer o quanto somos falsos para querer o bem e bastante eficazes para desejar o mau, pois a criança pobre que nos sensibiliza hoje termina, quase sempre, sendo o “bandido” que odiaremos amanhã.

Para terminar, deixo uma ideia para reflexão. O que deve definir a nossa posição frente à criminalidade não é o mau que acreditamos viver no criminoso, mas, sim, a suposta bondade que há em nós.