O plebiscito é democratismo

04/07/2013 23:13

Não estou falando aqui de todo plebiscito ou qualquer outra forma de consulta popular, passando pelo referendo até a “participação do usuário na administração pública”, prevista no § 3.º do artigo 37 da Constituição. Todas essas formas de participação popular no processo político- administrativo são extremamente relevantes, embora ainda não retirem o caráter de representação da democracia brasileira, também classificada como “semidireta”. Refiro-me aqui a este eventual plebiscito proposto pela presidente Dilma, para ser utilizado na tão esperada reforma política.

 

Mais uma vez, os líderes políticos brasileiros confundem democracia com democratismo, conceitos bastante distintos. O primeiro significa, em termos bem sintéticos, e na expressão já consagrada do ex-presidente americano Abraham Lincoln, “o governo do povo, pelo povo e para o povo”, aduzindo, respectivamente, aos imperativos de titularidade, legitimidade e finalidade do poder político. Já democratismo é uma espécie de encenação democrática, que trava, quando não manipula, a discussão dos reais problemas que interessam à sociedade, ou mesmo a forma mais adequada de discuti-los.

 

A Constituição brasileira, no parágrafo único do artigo 1.º , dispõe que todo poder emana do povo, “que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Ocorre que não existe, a rigor, uma forma direta de exercício do poder pelo povo, sendo mais adequado falar em democracia participativa todas as vezes que nos referimos à democracia “direta”. É que sempre, e em todas as situações, mesmo nos mecanismos de consulta popular, a atuação dos órgãos de representação se faz presente de forma bastante significativa.

 

Se no plebiscito, a consulta é prévia, ao Congresso Nacional cabe a elaboração da lei a partir da opinião do povo. Se no referendo a consulta é posterior, ele é precedido de uma lei já aprovada pelo Congresso Nacional, mas que possui alguns dispositivos cuja validade depende da opinião do povo (vide o referendo sobre o comércio de armas de fogo, em 2005). Na lei de iniciativa popular, não bastasse a complexidade de seu procedimento, a proposta vira projeto de lei que tem iniciativa na Câmara dos Deputados, seguindo todo o trâmite normal de um processo legislativo, com discussão nas comissões, votações no plenário e, inclusive, veto ou sanção do Presidente da República.

 

O povo brasileiro ainda não se afinou com a democracia participativa, apesar de todos os institutos e procedimentos previstos na Constituição nesse sentido. E não chamem o movimento nas ruas de “participação popular”, pois esta só ocorre quando os membros da sociedade se utilizam de mecanismos institucionais, não só os instrumentos de consulta popular, antes mencionados, como também, e principalmente, as ações constitucionais. Estas ações judiciais transformam o tradicional direito de acesso à justiça em um verdadeiro processo popular de acesso à política, pelas vias institucionais.

 

O movimento nas ruas é sintomático. Ele mostra que quando o acesso à política é obstacularizado, isso faz com que o poder (o que de fato emana do povo), como toda e qualquer força oprimida, venha à tona de uma forma radical. Imaginem, de forma bem simplória, uma panela de pressão: ou o vapor sai aos poucos, fazendo os chiados comuns, ou provoca uma explosão, com um barulho assustador.

 

O acesso à política pelas vias institucionais é uma forma de canalizar a pressão do poder popular por meio da democracia participativa. Ele não impede, por óbvio, que ocorram, de tempos em tempos, as explosões que se ouvem das ruas, formas salutares de manifestação popular, legitimadas pelo consagrado direito de resistência e de oposição ao poder formal.  

 

Mas no Brasil, os líderes políticos não têm nem querem ter o molejo da democracia participativa, exatamente o jogo político que deve ser jogado com a sociedade. Não. No Brasil, o jogo político é jogado apenas com os partidos. Na era Lula, com o mensalão, a jogada era uma verdadeira prostituição. O toma-lá-dá-cá envolvia dinheiro vivo em troca de... governabilidade. Mas com um Congresso depravado, a única forma de azeitar a máquina parecia ser mesmo a putocracia.  

 

Com o mensalão desnudado no STF, a única saída para Dilma foi prostituir o Congresso utilizando como moeda os seus 39 ministérios e demais cargos no executivo. A imagem de austeridade no início do governo não colou. Surgiram, agora, as manifestações, ensaiou-se um discreto, e até mesmo indesejável, “Fora Dilma”. Nem o panis et circences da copa das confederações ajudou. Não adiantou o punhal de puro aço luminoso para matar o amor, pois as pessoas na sala de jantar estavam ocupadas em nascer e morrer.

 

Com as pesquisas de opinião mostrando uma descida considerável na aprovação do governo, veio a cartada final, um autêntico royal straight flush político: o plebiscito!

 

Uma jogada de mestre. Houve dissidentes no próprio governo e no PT, partido da presidente. A oposição chiou, mas não como uma panela de pressão. Juristas foram consultados, seus livros ficaram mais valorizados. São espertos esses juristas, parecem viver de juros. Mais cartazes foram confeccionados para serem bramidos nas ruas. Enquanto isso, a Dilma ganha tempo para respirar politicamente.Tudo em nome da reforma política.

 

Mas, plebiscito para a reforma política? Isso parece piada. Não, isso é Brasil. Pelo menos o Brasil que ainda é. Reforma política não é um tema simples que se resolve com uma consulta popular, mas deve ser feita por meio de mecanismos de participação da sociedade, de acesso à política. E essa participação é um processo, não se reduz a uma consulta isolada, através de respostas a perguntas vagas e objetivas. Sem falar nas campanhas de "orientação" muitas vezes tendenciosas.

 

A reforma política já começou. Ela está nas ruas. O plebiscito é apenas uma tentativa de contê-la!