O Estado laico pode ser deísta?

21/07/2013 11:35

Mestre, qual é o grande mandamento da lei? Jesus lhe disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, este é o máximo e o primeiro mandamento (Mateus 22, 36-38).

 

A citação evangélica acima possui um sentido peculiar para a compreensão do princípio da dignidade humana como fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1.º, III, CB). A expressão “de todo o teu coração e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento” parece se referir ao homem integral, representando, respectivamente, o seu sentir, o seu querer e o seu pensar, que devem estar todos eles voltados para o ideal de bondade e justiça, objetivo esse, por sua vez, que pode estar representado na expressão “Amarás ao Senhor teu Deus...”.

 

Não acreditamos que pensar seja aqui uma mera atividade de um fanatismo religioso, mas sim da própria essência cartesiana do existir. “Todo o teu entendimento” significa, parece-nos, pensar no sentido de discernir ou compreender, um exercício mesmo do bom senso, como uma das faculdades do homem racional.

 

Sendo assim, quando se fala em “Amar a Deus”, nada impede que compreendamos que se trate da linguagem religiosa para o amor à justiça, à verdade, ou seja, a todos os valores que são objetos do estudo da Filosofia do Direito, e tão caros a uma comunidade que pretenda ser evoluída, apesar de não haver, e nem tão cedo haverá, uma definição precisa de todos esses valores.

 

O verbo amar ainda encontra muita resistência no meio científico em virtude de expressar os anseios que nascem das emoções e não da razão. Mas, se por um lado essa resistência impede que existam teorias abstratas e vazias, ou, como se costuma dizer, “sem valor científico”, por outro desconsidera o homem na sua integralidade.

 

Da máxima “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo o teu entendimento” podemos extrair a idéia de que há uma referência ao sentimento, ao espírito (vontade) e à razão humana, respectivamente.

 

Então, amar, aqui, pode ser entendido como querer com intensidade, desejar algo. Não precisamos saber o que é a Justiça para termos a certeza de que a desejamos. Por exemplo: quando a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 3.º, inciso I, dispõe que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é construir uma sociedade livre, justa e solidária, isto é a expressão de um desejo, mesmo que não haja nada definido sobre o que seja cientificamente uma sociedade com esses adjetivos.

 

Pois bem. Uma das questões pouco discutidas é sobre o significado da referência à “proteção de Deus” no Preâmbulo da Constituição brasileira. Existe divergência quanto ao caráter normativo do preâmbulo. Seguimos o entendimento de Alexandre de Moraes quando este diz: “Apesar de não fazer parte do texto constitucional propriamente dito e, conseqüentemente, não conter normas constitucionais de valor jurídico autônomo, o preâmbulo não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem”. (MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 11. ed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 49, itálicos no original). Mais adiante, Alexandre de Moraes faz uma interessante observação, ao afirmar que “o Estado brasileiro, embora laico, não é ateu, como comprova o preâmbulo constitucional” (Obra Citada, p. 76).

 

Mas para se compreender a noção de “Estado laico” é preciso acompanhar a evolução de um movimento, iniciado em meados do século XIX, denominado de Anticlericalismo (veja o verbete no Dicionário de Política, de Bobbio). Tal movimento foi impulsionado pela já anterior tentativa de se separar Estado e Igreja (não exatamente Estado e Religião). Observe que laico é o mesmo que leigo, palavra que, pelo dicionário do Aurélio, significa: “Que não é clérigo; laico”. Já aí dá para perceber que existe uma diferença enorme entre Igreja e Religião, razão pela qual se pode falar em laico crente, como observado por Alexandre de Moraes. Laico, porque não se filia a nenhuma corrente clerical ou a nenhuma igreja (enquanto instituição organizada social ou politicamente); e crente, porque se admite a ideia de um livre-pensador, não vinculado a nenhuma instituição eclesiástica, mas que possui uma determinada crença pessoal.

 

Dessa forma, assim como uma pessoa pode ter uma religião e não se filiar a nenhuma Igreja, o Estado também pode se apresentar como crente (deísta), no plano axiológico, e não ter qualquer confissão religiosa oficial.

 

Sobre o movimento anticlerical, veja o que diz Bobbio;

 

Numa primeira fase, especialmente, as posições anticlericais não se identificam com a irreligião e o ATEÍSMO, mas seguem prevalentemente uma orientação deísta; progressivamente, também na medida em que o Anticlericalismo liberal entra em competição com o democrático e o radical emergem cada vez mais posições implícita ou explicitamente ateístas. A polêmica contra a religião e a Igreja católica faz, contudo, freqüente referência, por uma autêntica simpatia e pela necessidade de ter em conta as convicções das massas populares, ao cristianismo primitivo, democrático e igualitário. Se no plano das idéias acaba investindo contra o próprio âmbito da religião e de seus princípios morais e sobrenaturais, no plano político o Anticlericalismo se configura como LAICISMO, isto é, visa pelo menos, na maior parte de suas tendências, a um Estado plenamente laico, perante o qual sejam absolutamente livres e iguais todos os cultos e todas as profissões de idéias;

 

No meu entender, no Brasil atual, existem algumas evidentes distorções, como a banda da Polícia Militar tocando em procissão de Nossa Senhora Aparecida, por exemplo, apenas porque é a “padroeira do Brasil”. Sem falar nos feriados religiosos, padre que “abençoa” obra pública na inauguração etc.

 

Agora, a questão mais polêmica é a dos símbolos religiosos em repartições públicas, como os crucifixos nas salas de audiência do fórum, por exemplo.

 

Como cidadão e estudioso de Direito Constitucional, vejo isso como incompatível com a noção de Estado laico ou “anticlerical”. O crucifixo com a imagem do Cristo morto é uma simbologia tipicamente católica, ao contrário dos que sustentam a sua universalidade, em termos de religião cristã, o que em tese legitimaria esse costume.

 

Para os evangélicos, a imagem adorada nos templos é de uma cruz vazia, sem o Cristo. Para os espíritas, Cristo sequer é a imagem de Deus, o qual não tem uma expressão antropomórfica, sendo apenas uma ideia de "inteligência suprema, causa primária de todas as coisas", mas sem forma definida e impossível de ser conhecida pelo homem em sua plenitude. No entanto, todos se professam cristãos. Por essa razão, e sem falar nas religiões não cristãs, colocar a imagem do Cristo crucificado nas repartições públicas é privilegiar a expressão clerical de uma específica instituição religiosa: a Igreja Católica Apostólica Romana.

 

O Estado brasileiro é laico, sim, mas não ateu, como bem salientou Alexandre de Moraes. Entretanto, embora crente (ou deísta), não poderia oficializar, como faz, os costumes e símbolos católicos, devendo apenas respeitar, como a todas as outras, essa importante religião como um dos ricos instrumentos de desenvolvimento espiritual da personalidade.