Matando Invisíveis

01/04/2012 16:39

A ideia de pessoas invisíveis na sociedade é fruto da reflexão sobre o documentário “Ônibus 174”, filme que retrata o caso do sequestro de um ônibus com reféns, ocorrido no Rio de Janeiro, em 2000. O saldo foi uma refém morta devido a uma ação infeliz de um policial que, ao tentar alvejar o sequestrador, acertou a garota que estava em seu poder. As cenas são dramáticas: o desespero das vítimas dentro do ônibus, a expressão de loucura do sequestrador, colocando a arma na cabeça, na boca das pessoas. E o pior: tudo real.

Mas, só um olhar sensível e racional ao mesmo tempo pode identificar o drama não nas cenas reais, mas em toda realidade social que nos leva a fatos dessa natureza. O próprio documentário busca ir além do fato em si mesmo. Toda análise de um fato isolado, desconectado com suas nuances psicossociais, do histórico das personagens envolvidas, tende a ser sempre desqualificado. Principalmente quando esse fato envolve um dos mais graves problemas sociais: a criminalidade.

O que diferencia o documentário Ônibus 174 é a personalização da figura principal. Sandro presenciou, quando criança, a mãe ser violentada e morta a facadas. Nunca conheceu o pai. Passou um tempo morando com a tia, mas logo fugiu de casa para viver na rua. Foi um dos sobreviventes de outra tragédia nossa de cada dia. O assassinato de meninos de rua, que ficou conhecido como “a chacina da Candelária”. Chocou a sociedade, na época.

É triste ver o depoimento de uma menina de rua contando o que eles sofrem. Conta que é costume alguém passar de madrugada pelos meninos dormindo na calçada e arremessar uma pedra, tipo paralelepípedo, para acertar em cheio a cabeça de um deles. Pessoas que sentem o mórbido prazer de ver miolos espatifados, e ainda exultarem pela mira precisa. Daí, quando aparece um Sandro apontando uma arma na cabeça de jovens de “classe média baixa” que estão pegando tranquilamente um ônibus para ir à faculdade, ou para visitar parentes em outros bairros, coisas simples que Sandro jamais teve, surgem a revolta, os estigmas e a reação violenta.

No desfecho do fato lamentável e triste, Sandro capturado, e se podia ouvir a voz da multidão: “Lincha! Lincha!” Como bem observa o documentário, a polícia serve para manter, à força, a invisibilidade dos Sandros da vida. Eles são invisíveis no dia a dia, tanto que são mortos na madrugada e ninguém liga para isso. Tentam mostrar arte nos sinais de trânsito, o último recurso de uma vida digna, mas nossos vidros estão fechados. E quando surge um que tenta realçar sua existência de forma desesperada e violenta, é preciso a todo custo colocá-lo de volta na sua insignificância, na sua "invisibilidade". Matem a todos, portanto; é mais simples.

Geísa, a refém morta, bem como os demais que estavam naquele ônibus, não foram vítimas apenas de Sandro. Pensar assim é uma visão míope, mesquinha, desumana, e limitada da realidade. Eles foram vítimas de nossa indiferença e insensibilidade. De muitos de nós que somos inertes na solidariedade e ativos na violência reativa e cômoda frente aos mais elementares problemas sociais.