Imprensa: equívoco ou uma sutil ideologia?

28/06/2013 19:16

Um fato curioso passou despercebido por muitos nesta semana. Talvez alguns nem deem tanta atenção para isso, em razão da violência que é noticiada todos os dias, o que muitas vezes nos torna insensíveis ou indiferentes. É que temos uma estranha mania de nos acostumarmos com aquilo que ocorre com frequência, mesmo que seja um cenário cotidiano de coisas desagradáveis.

 

Pois bem. Falo da operação do BOPE na favela da Maré no Rio de Janeiro, que resultou em nove mortos. Nos telejornais, a notícia foi veiculada informando que, dos nove mortos, dois eram “inocentes”. A ênfase na inocência de duas das vítimas da ação do BOPE foi o destaque da matéria, com direito a expressão de preocupada da jornalista Sandra Annenberg, âncora do Jornal Hoje.

 

Na quarta-feira 26, O Globo on-line divulgou a lista dos mortos. A chamada falava agora de dez mortos. E aí, o mais intrigante: a informação sobre as vítimas estava relacionada aos seus antecedentes. Duas pessoas, uma com 35 e outra com 16 anos, são qualificadas como “não tem antecedentes criminais”. Os demais vêm com uma precisa indicação de seu passado inconveniente, dentre roubos, homicídios e tráfico de drogas.

 

É interessante como a imprensa faz o jogo da neurose repressiva ao relacionar o fato de não se ter passagem pela polícia com a condição de inocente. Nesse ponto, duas observações devem ser feitas, no aspecto jurídico:

 

  1. a inocência de um cidadão só deve ser avaliada quando este se encontra submetido, de forma legítima, a um específico processo judicial. É que a inocência, sendo presumida relativamente (ou juris tantum, na linguagem forense), admite prova em contrário, mas apenas para averiguar o grau de culpabilidade de alguém ante a ocorrência de um determinado delito. Isso implica dizer que pessoas aleatoriamente mortas pela polícia, na condição de moradores de uma favela, por exemplo, jamais poderiam ser qualificadas de acordo com sua condição de culpado ou inocente de qualquer coisa. O único erro dessas pessoas foi o de estar diante de um braço armado do poder público, que se intitula democrático, no lugar errado e na hora errada.

 

  1. mesmo que estivessem submetidas a um julgamento, estas pessoas, se fossem consideradas culpadas pelo cometimento do delito pelo qual estavam sendo processadas, jamais sofreriam uma pena de supressão de suas vidas, não pelo menos de forma legítima. Assim, se nada legitima a morte dessas pessoas por quaisquer das forças de segurança do Estado, então parece ser simplesmente burra a notícia que discrimina, dentre as pessoas assassinadas pelo BOPE, as que tinham ou não passagem pela polícia.

 

Quanto ao aspecto social, a imprensa passa uma mensagem subliminar que visa legitimar potenciais investidas da polícia, desde que os executados na favela já tenham cometido algum delito e, por isso, não sejam mais considerados “inocentes”. Estes se tornariam, então, os “inimigos”, de quem falava o criminalista alemão Günther Jákobs, autor de uma enviesada teoria do Direito Penal.

 

Isso traz à tona o tema do meu livro Pena de Morte no Brasil, onde destaquei o aspecto social da inefetividade da Constituição no ponto em que coloca a pena capital como uma das espécies de penas vedadas na ordem jurídica brasileira. Mostra que a ideia de pena deve abranger sua expressão social, e não se limitar a um contexto jurídico, até porque a pena de morte não é exclusivamente um instituto de direito penal, mas abrange também a abordagem constitucional.   

 

Na verdade, não se pode qualificar apenas como burrice os graves equívocos, em matéria jurídica, quando da  veiculação da notícia acima citada. É extremamente crítico o fato de a imprensa avaliar as condutas abusivas do aparelho repressivo estatal pela qualificação sociojurídica das vítimas. E mais crítico ainda é a imprensa difundir isso, formando uma sutil ideologia da repressão a todo custo, e vendendo-a como uma panaceia para o delicado e não menos complexo problema da criminalidade em nosso País.

 

Vide a PEC 33/2012...